• 13 Jun, 2025
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Chatbots, deepfakes e a morte da verdade

Chatbots, deepfakes e a morte da verdade

Teve um momento em que me peguei lendo uma notícia e, mesmo com todos os dados ali, simplesmente não consegui confiar. Fiquei parado olhando para a tela, tentando entender por que aquela sensação de dúvida me dominava. E a verdade é que isso vem acontecendo cada vez mais. Não é por paranoia ou desinteresse, mas porque hoje tudo pode ser manipulado. A imagem pode ser alterada. A voz pode ser replicada. O vídeo pode ser fabricado do zero. Vivemos uma época em que o que parece convincente é mais importante do que o que realmente é. E isso me assusta profundamente.

Os chamados chatbots com inteligência artificial já são capazes de escrever textos completos, com estrutura lógica, dados bem colocados e até emoção no tom. Os deepfakes conseguem gerar vídeos tão realistas que enganam até especialistas. E diante disso, a linha entre verdade e mentira vai se apagando de forma perigosa. A mente humana ainda funciona com base na confiança visual. Se vemos, acreditamos. Se ouvimos, reagimos. E é justamente esse gatilho psicológico que essas tecnologias exploram com precisão. O resultado é um mundo onde a verdade precisa disputar espaço com versões criadas sob medida para influenciar.

A primeira vez que vi um deepfake foi como uma pancada silenciosa. Era um vídeo de uma figura pública dizendo algo que nunca havia dito. Eu sabia que era falso, mas mesmo assim fiquei desconfortável. Parecia real demais. A voz, o rosto, o contexto, tudo me fazia acreditar. E aí percebi que, se até eu, com consciência crítica, me senti confuso, imagina quem consome esse tipo de conteúdo sem saber que pode ser fabricado. É nesse ponto que a tecnologia deixa de informar e começa a distorcer, mesmo sem parecer agressiva.

O lado obscuro da tecnologia

O mais grave é perceber que a tecnologia já não precisa mais da verdade para funcionar. Ela opera com base em cliques, engajamento, tempo de permanência. Se uma mentira gera mais atenção do que um fato, é ela que será promovida pelos algoritmos. A inteligência artificial pode criar textos e imagens com base em padrões, mesmo que esses padrões estejam errados. A realidade se transforma em apenas uma entre várias opções de conteúdo. E quando tudo é questionável, a confiança deixa de existir. Assim, a verdade não desaparece de uma vez. Ela vai se diluindo até deixar de importar.

Eu sempre acreditei que a base de qualquer sociedade saudável era a confiança. Confiança no que se lê, no que se vê, no que se escuta. Mas ultimamente venho percebendo como essa base está sendo corroída por dentro. Não é uma queda visível, como um prédio que desmorona de uma vez. É mais como infiltração silenciosa. Um vazamento constante de falsidade em pequenas doses. Quando você já não tem certeza do que é verdadeiro, passa a duvidar de tudo. Até das coisas mais básicas. E isso afeta não só o que pensamos, mas como vivemos.

Esse impacto psicológico da dúvida constante é profundo. Quando você não confia mais na informação, começa a questionar as instituições que a transmitem. A imprensa vira inimiga. A ciência vira teoria. A educação perde força. A conversa se transforma em conflito. O que antes era ponto de partida vira ponto final. E o pior é que isso é alimentado por sistemas que lucram com a polarização. Plataformas digitais entenderam que o conteúdo que divide é o que mais prende atenção. E começaram a entregar exatamente isso: mais ruído, menos clareza.

A inteligência artificial se tornou uma arma poderosa nesse processo. Um chatbot pode simular um especialista, escrever com autoridade, usar palavras complexas e ainda assim espalhar inverdades. Um vídeo gerado por deepfake pode colocar frases falsas na boca de qualquer pessoa. E uma imagem fabricada pode virar manchete antes mesmo de ser checada. Tudo isso em questão de minutos. A informação deixou de ser construída. Agora ela é fabricada em escala industrial. E quem tem as ferramentas certas molda a narrativa como quiser.

Com o tempo, percebi que a dúvida passou a fazer parte do meu cotidiano de uma forma desconfortável. Sempre que vejo uma notícia, fico com um pé atrás. Sempre que ouço um áudio estranho, já penso em edição. Até conversas simples passaram a exigir cuidado, como se tudo pudesse ser interpretado fora de contexto ou manipulado. Isso gera desgaste. Gera cansaço mental. E mais grave ainda, gera desconfiança entre as pessoas. A verdade virou um campo de batalha. E quando isso acontece, todos perdem. Inclusive quem acha que está vencendo.

Foi só quando comecei a observar como as pessoas se comportavam nas redes que percebi a força que a manipulação digital realmente tem. Vi amigos compartilhando vídeos falsos com total convicção. Vi parentes sendo influenciados por teorias construídas por inteligência artificial. E percebi que o problema não era só acreditar na mentira, mas viver dentro dela. Porque quando o falso é repetido o suficiente, ele começa a parecer verdadeiro. Não por lógica, mas por familiaridade. E isso é exatamente o que os algoritmos alimentam todos os dias.

Transumanismo

As bolhas de informação foram turbinadas por chatbots treinados para reforçar crenças, repetir argumentos e manter as pessoas girando no mesmo círculo de ideias. Quem acredita em algo vê aquele algo sendo validado o tempo todo. E quem pensa diferente é retratado como ameaça. A inteligência artificial se transforma assim em agente ativo da divisão social. Não porque ela escolhe um lado, mas porque ela trabalha em cima do que engaja. E o que engaja é o conflito. O resultado é um ambiente onde todo mundo se sente certo e ninguém consegue mais dialogar.

Na política, o cenário é ainda mais delicado. Deepfakes usados para influenciar eleições já não são uma hipótese distante. Estão acontecendo. Vídeos falsos com declarações forjadas circulam, plantando dúvidas e moldando opiniões. Bots simulam perfis reais, manipulando discussões públicas, pressionando decisões, distorcendo o debate. O que antes exigia esforço e articulação agora pode ser feito com códigos e servidores. A propaganda evoluiu para algo mais sutil, mais técnico e muito mais perigoso. Porque não tem rosto, não tem responsável, não tem freio.

O mais triste é ver o impacto disso no pensamento crítico. As pessoas param de investigar. Param de questionar. Passam a consumir informação como se consome entretenimento. Leem um título, veem uma imagem, reagem com raiva ou aprovação e seguem para o próximo estímulo. Não há tempo para análise. Não há espaço para reflexão. E sem reflexão, a verdade perde lugar. Vira apenas mais uma narrativa entre tantas. E quando tudo é opinião, os fatos deixam de importar. Isso cria uma sociedade que não discute ideias, apenas defende posições.

Durante muito tempo eu achei que não dava mais pra fazer nada. Que o mundo tinha virado uma terra sem filtro, onde quem gritasse mais alto moldava a realidade. Mas com o tempo, percebi que essa postura de desistência também é uma forma de se render à mentira. Porque por mais que a tecnologia avance, ainda existe algo que ela não pode controlar completamente: a consciência. O olhar atento. A vontade de entender. A escolha de não aceitar tudo de forma passiva. E é aí que começa a reconstrução da verdade. Não com leis ou algoritmos, mas com postura.

O primeiro passo é reaprender a duvidar. Mas não no sentido de desconfiar de tudo como se nada mais fizesse sentido. É duvidar com curiosidade. Com responsabilidade. Antes de compartilhar algo, buscar a fonte. Antes de aceitar uma imagem, investigar o contexto. Antes de reagir com raiva, respirar e pensar. A velocidade da mentira é enorme, mas a profundidade da verdade ainda tem força. Só que ela exige esforço. Exige pausa. E hoje, mais do que nunca, precisamos de gente disposta a fazer esse esforço.

Outro ponto essencial é educar para a realidade. Ensinar crianças e jovens a interpretar, a analisar, a separar fato de opinião. A não depender apenas da aparência de um conteúdo, mas a buscar consistência, a valorizar fontes confiáveis, a respeitar o processo do conhecimento. A inteligência artificial vai continuar evoluindo. Mas se formarmos mentes críticas, vamos ter pessoas menos vulneráveis a manipulações. E isso vale mais do que qualquer filtro de plataforma. É no pensamento que a verdade sobrevive.

No fim das contas, proteger a verdade é uma escolha diária. É não se calar diante da distorção. É não compartilhar só porque combina com a nossa opinião. É aceitar que às vezes estamos errados. E que mudar de ideia faz parte da liberdade de pensar. A verdade não morre de uma vez só. Ela morre quando a gente para de cuidar dela. Mas também pode renascer. Toda vez que alguém escolhe ser honesto, mesmo quando ninguém está olhando. Toda vez que alguém se recusa a ser massa de manobra. Toda vez que alguém para e diz: quero saber o que realmente aconteceu.