• 12 Jun, 2025
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Cresci na Periferia e Levo Ela Comigo Até Quando o Mundo Finge Que Não Existe

Cresci na Periferia e Levo Ela Comigo Até Quando o Mundo Finge Que Não Existe

Neste artigo, compartilho minha experiência de ter crescido na periferia e o quanto esse lugar continua me habitando, mesmo quando a vida me leva pra outros cenários. Um texto sobre pertencimento, sobrevivência, orgulho e a dor de ser invisível num país que só lembra da quebrada quando convém.

A quebrada me moldou antes que eu soubesse quem eu era

Eu não escolhi nascer na periferia. Ninguém escolhe. A gente simplesmente chega, se acostuma com o que tem e aprende a sobreviver com o que falta. Mas com o tempo, entendi que aquilo que parecia pouco era, na verdade, tudo. A rua estreita, o cheiro de fritura vindo da casa da vizinha, o barulho da bola batendo no portão, o grito da mãe chamando pra entrar. Tudo isso foi esculpindo quem eu sou.

Crescer na quebrada é entender cedo demais que o mundo não foi feito pra gente. É ver a escola caindo aos pedaços enquanto ouve na televisão que a educação é prioridade. É ver o corre da sua mãe pra pagar o gás, enquanto no shopping do outro lado da cidade tem loja vendendo perfume de oitocentos reais. A gente cresce entendendo que pra existir precisa resistir. E que o caminho vai ser sempre mais longo, mesmo quando o destino é o mesmo dos outros.

Mas apesar de tudo isso, a periferia me deu algo que lugar nenhum mais me deu: verdade. Eu aprendi sobre lealdade nas calçadas. Sobre comunidade nos becos. Sobre amor nos gestos pequenos, como dividir o último pacote de bolacha. Lá, ninguém tem muito, mas todo mundo tem um pouco de si pra oferecer. E isso é raro num mundo que vive pedindo mais, cobrando mais, exigindo mais.

Durante muito tempo, tentei me afastar da periferia. Como se sair dela fosse sinônimo de vitória. Como se usar palavras mais bonitas e roupas mais neutras fosse me deixar mais aceito. Mas quanto mais eu tentava disfarçar, mais vazio eu me sentia. Porque eu não queria me afastar. O que eu queria mesmo era que o mundo me aceitasse do jeito que eu sou. Com a gíria, com a marca de sol, com a bagagem de quem aprendeu tudo na marra.

Levo a periferia comigo mesmo quando estou longe dela. Na forma de observar o mundo, de desconfiar dos elogios fáceis, de saber ler nas entrelinhas quando alguém me subestima. A quebrada me deu um radar. Me ensinou a me proteger, mas também a acolher. E por mais que tentem fingir que ela não existe, ela vive em mim em cada escolha que faço. Porque antes de ser qualquer coisa, eu fui dali. E isso nunca vai deixar de ser verdade.

A gente aprende a ser invisível pra não virar estatística

Crescer na periferia é entender muito cedo que existe uma linha invisível separando quem pode errar e quem já nasce condenado. A gente aprende a baixar o tom, a desviar o olhar, a não chamar atenção. Porque qualquer passo em falso pode custar mais caro pra quem veio de onde eu vim. Não importa se é no centro da cidade ou numa reunião de trabalho, a quebrada caminha comigo, mas o mundo finge que ela não tá ali.

E dói perceber isso. Dói perceber que o endereço da sua infância muda a forma como te tratam. Que a roupa que você usa, o jeito que você fala, até a forma como anda, tudo é julgado antes mesmo de você abrir a boca. Já me olharam torto só porque eu mencionei o bairro onde cresci. Já senti a tensão no ar mudar quando disse que era da zona sul. Como se ser da periferia fosse um rótulo, um defeito, uma ameaça.

Mas o que ninguém entende é que a gente aprende a viver com pouco e fazer muito. Aprende a encontrar alegria em coisas que ninguém nota. No churrasco improvisado com caixa de som estourada, na gambiarra que vira solução, na força que se renova a cada dia mesmo quando o cansaço grita. A quebrada é dura, mas também é viva. É onde pulsa o que tem de mais autêntico nesse país.

Eu me orgulho de ter crescido ali. De saber o nome da vizinha que vende bolo na porta de casa, do tio que conserta ventilador pra completar a renda, da senhora que cuida dos filhos da rua toda quando alguém precisa trabalhar. Ali, ninguém tá sozinho, mesmo quando tá com tudo contra. É um senso de comunidade que o asfalto liso dos bairros ricos não conhece.

Mas não é só romantismo. Tem dor também. Tem medo. Tem injustiça. Tem a ausência do Estado que só aparece em forma de viatura. Tem a dificuldade de acesso a tudo o que deveria ser básico. E mesmo assim, a gente segue. Acorda cedo, volta tarde, sonha entre uma conta e outra. Porque desistir não é opção. A periferia não para porque não pode. E é nesse movimento forçado que a gente aprende a criar resistência com a mesma naturalidade que outros aprendem a herdar privilégio.

A vida na quebrada te ensina a sonhar com os dois pés no chão. E é isso que me move até hoje. Cada conquista que tenho, cada espaço que ocupo, cada lugar que alcanço, levo comigo essa base. Não como peso, mas como raiz. Porque antes de tudo, foi ela que me segurou em pé.

Levei tempo pra entender que a periferia não é fraqueza. É força bruta

Durante anos, carreguei minha origem como se fosse algo a ser escondido. Como se não mencionar o bairro onde cresci ou suavizar meu sotaque fosse me abrir mais portas. E talvez até tenha aberto algumas. Mas o que eu não percebia é que, ao fazer isso, eu também me trancava por dentro. Eu deixava do lado de fora pedaços importantes de mim. A parte que sabia improvisar, resistir, sobreviver. A parte mais verdadeira da minha história.

Aos poucos, fui me dando conta de que eu não precisava me encaixar. Eu precisava me assumir. E assumir a quebrada é mais do que dizer de onde vim. É olhar pra trás com orgulho, mesmo sabendo de tudo que doeu. É perceber que, enquanto muitos aprendiam a se posicionar em discursos de faculdade, eu já entendia de política sentando no bar com gente que vive o sistema na pele. É saber que empatia não se aprende em livro, se aprende no ônibus lotado, no mercado com o vale no limite, na fila do SUS.

O que a periferia me deu ninguém tira. Me deu leitura de ambiente, leitura de olhar, leitura de risco. Me ensinou a ficar esperto sem perder a leveza. A confiar devagar, mas com profundidade. Me ensinou que afeto pode ser duro, mas nunca é falso. Que respeito se constrói com presença. E que se a vida não te entrega as ferramentas, você inventa com o que tem.

Comecei a perceber o quanto a quebrada é ignorada justamente porque é potente. Porque o que se cria ali, mesmo com tão pouco, é arte, é cultura, é movimento. E por isso incomoda tanto. Porque mostra que o povo que o sistema tenta apagar é o mesmo que faz o país pulsar. Da música que toca nas caixas da viela à ideia que vira negócio na laje, tudo nasce ali com urgência, com coragem, com verdade.

A periferia me moldou em silêncio, e só hoje, com mais maturidade, percebo que tudo que sou vem disso. Da infância no asfalto quente, do cheiro de pão da padaria da esquina, do jeito de falar que só quem cresceu ali entende. E não é sobre exaltar a dificuldade. É sobre reconhecer que mesmo ela me formou. Me ensinou a não me curvar, a não pedir desculpas por ocupar espaço, a não acreditar que dignidade é privilégio.

Quando entendi isso, tudo mudou. O que antes era motivo de insegurança virou raiz. Hoje, onde quer que eu vá, não escondo de onde vim. Porque foi a periferia que me ensinou que o mundo não vai me validar. Eu mesmo é que tenho que me validar. E pra isso, eu preciso levar comigo tudo que me trouxe até aqui. Sem filtro. Sem vergonha. Com orgulho.

A periferia me ensinou a ser inteiro num mundo que vive tentando me cortar pela metade

Hoje, quando caminho por lugares onde a quebrada não entra, eu entro carregando ela comigo. E não é como peso. É como armadura. Como escudo. Como lembrança viva de quem sou. Aprendi que não preciso caber nos moldes, porque eu sou feito de outra forma. Fui moldado por concreto rachado, por abraço apertado, por música alta no fim do dia. E tudo isso faz parte de mim tanto quanto qualquer diploma ou experiência profissional.

Levo comigo a consciência de que a quebrada ainda é vista como problema por quem nunca teve que sobreviver nela. Mas também levo comigo a certeza de que é ali que está a solução pra muita coisa que esse país insiste em ignorar. Criatividade, solidariedade, adaptação, cultura, afeto bruto e verdadeiro. A periferia é laboratório de futuro. É onde as ideias nascem antes de terem nome bonito. É onde as pessoas resistem antes de serem celebradas.

Nem sempre é fácil carregar essa origem num mundo que valoriza mais o que brilha do que o que pulsa. Mas eu escolhi fazer disso meu caminho. Não pra provar nada pra ninguém, mas pra não esquecer de onde tiro minha força. Porque toda vez que o mundo me desrespeita, é a voz da quebrada que me levanta. Toda vez que duvidam de mim, é a memória dos que vieram antes que me faz seguir.

A periferia é o lugar que me viu crescer, mas também é o jeito que eu tenho de estar no mundo. É a forma como escuto, como observo, como falo. É a paciência de quem já esperou ônibus por horas. É a pressa de quem aprendeu a fazer milagre com pouco. É a presença de quem sabe que, se não se colocar, vai ser engolido. Mas também é o sorriso de canto, a piada pronta, a força coletiva que só quem viveu entende.

Por tudo isso, eu não saí da periferia. Eu só fui levando ela comigo. Em cada decisão, em cada projeto, em cada texto como esse aqui. Porque enquanto o mundo continuar fingindo que ela não existe, eu sigo lembrando. Com orgulho. Com memória. Com verdade.

 

Marcelo Gustavo

Marcelo Gustavo

Eu sou Marcelo Gustavo, profissional de TI formado em Segurança da Informação e atualmente cursando Análise e Desenvolvimento de Sistemas. No Mentesfera, sou responsável por toda a parte técnica: planejamento, programação e manutenção do blog, garantindo que a plataforma funcione de forma estável e segura para nossos leitores. Além disso, atuo como redator, criando artigos 100 % autorais