• 13 Jun, 2025
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A Miséria Não é Cenário: Quando a Pobreza Vira Conteúdo Pra Monetizar

A Miséria Não é Cenário: Quando a Pobreza Vira Conteúdo Pra Monetizar

Neste artigo, compartilho minha angústia diante de um fenômeno que se espalha nas redes: criadores de conteúdo ganhando dinheiro em cima da dor dos outros. Um desabafo sobre os limites da empatia, da exposição e da ética em tempos de engajamento a qualquer custo.

Um Celular na Mão, Uma Dor na Frente, e Um Lucro no Fundo

Outro dia, navegando pelo YouTube, fui surpreendido por um vídeo com o seguinte título: “Entreguei comida para uma família que não tinha o que comer”. Parei. Cliquei. Não consegui assistir até o fim.

Não era pela imagem, já vi coisa pior. Era pela intenção por trás. Pelo modo como aquela cena, que deveria ser sagrada, íntima, quase intocável, tinha virado palco. Era como se a pobreza tivesse sido maquiada, montada e iluminada pra virar parte de um roteiro. E aquilo me doeu.

Me doeu porque já estive perto demais desse tipo de realidade pra conseguir ver com neutralidade. Porque eu conheço o olhar de quem tem vergonha de pedir. De quem estica a mão, mas abaixa os olhos. De quem não tem nem palavras pra agradecer, não porque é ingrato, mas porque sente que não deveria estar ali, naquela condição.

E agora? Agora essas mesmas pessoas viraram figurantes no show do engajamento.

Os vídeos se multiplicam. “Dei um salário mínimo para esse morador de rua”, “Construi uma casa para uma família humilde”, “Transformei a vida desse desconhecido”. E sempre com as mesmas fórmulas: música triste, narração dramática, closes no choro. No fundo, não é ajuda, é storytelling.

E eu fico pensando: quem tá sendo realmente ajudado nessa história? Porque o vídeo monetiza. O canal cresce. A audiência vibra. Mas e quem aparece ali, com o rosto sujo, o olhar cansado, a voz embargada? Essa pessoa volta pra casa com uma cesta básica e a imagem dela vendida como “conteúdo emocional”.

Tem algo de perverso nisso. De muito perverso.

Porque eu não tô dizendo que ajudar é errado. Pelo contrário. Mas existe uma linha fina, quase invisível, entre ajudar por compaixão e ajudar por cliques. Entre estender a mão e apontar uma câmera. Entre ver um ser humano… e enxergar um personagem.

E o que me assusta é como essa linha vem sendo cruzada com uma naturalidade assustadora. Como se fosse normal filmar o desespero de alguém, editar, colocar trilha sonora e publicar como se fosse um troféu de bondade.

Talvez a gente tenha se perdido. Talvez a gente tenha esquecido que a dor do outro não é propriedade pública. Que a fome, a falta, o abandono, não são oportunidades de conteúdo, são alertas, são urgências, são feridas abertas.

E o que mais me inquieta é ver que, por trás de tudo isso, existe um sistema que premia quem expõe mais. Quem choca mais. Quem emociona mais. Mesmo que, pra isso, precise atravessar a dignidade do outro como se fosse só mais um frame no vídeo.

Entre Ajuda e Audiência: A Linha Que Ninguém Mais Quer Ver

Eu fico pensando muito sobre até onde vai esse desejo de “ajudar” quando ele depende de uma câmera ligada. Se não tivesse vídeo, se não tivesse visualização, se ninguém fosse ver… será que o gesto ainda aconteceria? Essa é a pergunta que me dói mais.

Porque tem uma diferença enorme entre fazer o bem por alguém e fazer o bem com plateia. Quando a ajuda vira produto, quando a caridade precisa de likes pra valer, a gente precisa parar e refletir. Será que não estamos usando o sofrimento do outro como moeda de troca emocional?

Eu já vi vídeo com thumbnail do tipo: “ele chorou ao receber comida pela primeira vez em semanas”. E a imagem era um close no rosto cansado, nos olhos vermelhos, na lágrima escorrendo. Quase um clickbait construído em cima da dor. E ali eu senti como se aquela pessoa tivesse sido completamente desumanizada. Ela deixou de ser um ser humano com uma história, uma vida, uma privacidade… e virou só uma emoção digital empacotada em 1080p.

Sabe o que é mais cruel? É que muitos desses vídeos têm comentários como “parabéns, você é incrível”, “que coração lindo”, “precisamos de mais pessoas assim no mundo”. E a figura que realmente precisa ser vista, acolhida, lembrada, que é a pessoa em situação de vulnerabilidade, desaparece. O holofote vai todo pro youtuber. A compaixão é terceirizada.

E olha, eu entendo. De verdade. Vivemos numa era onde tudo é conteúdo. Onde o bem também precisa performar. Onde o algoritmo decide o que vale ser visto. Mas será que a gente precisa mesmo gravar tudo pra validar que somos bons? Será que não dá pra fazer o bem no silêncio, na humildade, no respeito?

Tem gente que vai dizer: mas sem o vídeo, outras pessoas não ajudariam. Pode ser. Mas eu acredito que tem formas de inspirar sem explorar. Tem formas de mostrar que o mundo precisa de empatia sem transformar a dor em espetáculo.

A pobreza no Brasil não é enredo, não é plano de fundo, não é cenário pra thumbnail. É realidade. É fome de verdade. É gente morando na rua com criança no colo. É vida real sendo vivida sem filtro. E quando a gente transforma isso em quadro de canal, em trilha de vídeo, em ranking de views, a gente tá, sim, lucrando com a dor alheia.

E mais do que isso: a gente tá normalizando esse tipo de exploração. Tornando aceitável algo que deveria nos causar indignação. Porque quando a miséria vira entretenimento, a compaixão perde o rosto.

A Farsa da Empatia Filmada e a Ilusão do Herói de Câmera

Eu fico pensando se essa galera que filma ajuda já parou pra olhar de verdade no olho de quem está sendo “ajudado”. Não o olhar de gratidão forçado, nem o olhar emocionado que rende mais curtidas. Tô falando do olhar de constrangimento. Aquele que tenta desviar da câmera, que se sente invadido, que aceita a cesta básica, mas engole seco ao perceber que virou conteúdo.

A gente cresceu ouvindo que ajudar é bonito. E é mesmo. Mas ajudar com uma câmera apontada, com drone sobrevoando, com tripé armado e editor escolhendo trilha de fundo… isso não é ajuda. Isso é marketing. E o pior: é um marketing disfarçado de bondade.

Eu não tenho dúvidas de que muitos desses criadores começaram com boa intenção. Mas o problema é que a boa intenção não é escudo pra tudo. Quando entra o dinheiro, a monetização, o crescimento do canal, a agenda de postagem… a linha entre solidariedade e oportunismo começa a se apagar. E aí vira um ciclo perigoso: quanto mais miséria, mais engajamento. Quanto mais sofrimento explícito, mais visualizações.

E é nesse ponto que eu percebo o quanto a empatia pode ser corrompida. Porque ela deixa de ser um sentimento genuíno e vira uma estratégia de produção. A pessoa filma a entrega da comida, mas não mostra o que vem depois. Não mostra que o problema daquela família não acabou ali. Que a fome volta amanhã. Que a criança que ganhou o brinquedo ainda dorme em chão batido. Que o vídeo teve fim, mas a dor não.

E o público? Acha que tá vendo um gesto bonito. Comenta, compartilha, se emociona. Mas o que muitos não percebem é que, ao consumir esse tipo de conteúdo, estão reforçando uma lógica cruel: a de que vale a pena explorar a vulnerabilidade, desde que o “final feliz” esteja bem editado.

Só que não tem final feliz nesse tipo de vídeo. Porque a vida real não tem corte, não tem pós-produção. O cara que ganhou uma quentinha no vídeo de hoje provavelmente vai dormir com fome semana que vem, sem câmera, sem like, sem thumbnail.

A caridade que é feita só quando tem plateia não é caridade. É ego massageado.

E o mais dolorido pra mim é ver que essas pessoas em situação de miséria estão sendo ensinadas a sorrir pra câmera. Estão aprendendo que, pra receber ajuda, precisam performar gratidão. Precisam chorar na hora certa. Precisam parecer suficientemente tristes pra comover.

Isso é desumanizador. Isso é perverso.

E no meio disso tudo, a gente vai perdendo a sensibilidade. Vai achando normal ver o sofrimento do outro com trilha sonora de piano. Vai curtindo vídeos como se fossem entretenimento leve. Vai esquecendo que, por trás de cada “caso comovente”, tem uma história real. Uma vida. Um ser humano que não pediu pra ser exposto.

A Dor Não É Um Roteiro: Precisamos Parar de Lucrar com a Vergonha dos Outros

No fim das contas, eu não escrevo esse texto pra apontar o dedo. Eu escrevo porque dói ver onde estamos chegando. Porque me incomoda saber que, pra muita gente, o sofrimento virou estratégia de crescimento. Que a fome virou enredo. Que o desespero virou métrica.

E eu não aceito isso como normal.

Não é normal colocar uma câmera na cara de alguém que perdeu tudo e perguntar “como você se sente?”
Não é normal editar a dor de uma mãe com trilha triste e legenda de superação.
Não é normal transformar a necessidade do outro em conteúdo compartilhável com CTA pra curtir e se inscrever no canal.

A gente precisa, com urgência, resgatar o valor da dignidade. Porque por trás de cada pessoa em situação de pobreza, existe uma história que não começa nem termina no vídeo. Existe uma trajetória, existe vergonha, existe luta, existe amor, existe passado. E tudo isso não cabe num vídeo de dez minutos com final emocionado.

Se você quer ajudar, ajude. Mas faça isso sem transformar o gesto em palco. Faça isso sem exigir retribuição emocional. Faça isso sem esperar reconhecimento público.

O que me dói de verdade é que, com essa lógica que estamos alimentando, estamos ensinando às próximas gerações que a dor do outro pode ser usada como trampolim. Que a pobreza pode ser “conteudizada” se for “com propósito”. Que a miséria, se bem editada, pode render renda passiva.

E isso, pra mim, é inaceitável.

Eu acredito que a verdadeira empatia acontece no anonimato. Que o gesto mais bonito é aquele que não vira post. Que a ajuda mais sincera é a que não espera retorno. E que o outro, o vulnerável, o esquecido, o explorado, precisa ser visto com respeito, não com roteiro.

Porque a miséria não é cenário.

Ela é real. Ela é crua. E ela não pode ser tratada como entretenimento.

Se você quer transformar o mundo, comece respeitando a dor que você não sente. Comece olhando sem explorar. Comece estendendo a mão sem segurar uma câmera na outra.

Talvez o mundo precise de menos conteúdo… e mais consciência.