• 13 Jun, 2025
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O lado obscuro da tecnologia: vício, vigilância e controle

O lado obscuro da tecnologia: vício, vigilância e controle

Tem dias em que eu percebo que já comecei a rolar a tela do celular antes mesmo de levantar da cama. E nem sei o que estou procurando. Só mexo. Abro um aplicativo, depois outro, vejo as notificações, leio uma mensagem que podia esperar. É automático. E o mais assustador é perceber que isso não é um caso isolado. É rotina. A gente chama de hábito, mas é um vício disfarçado. E a verdade é que a tecnologia, que deveria servir a gente, passou a nos comandar. A gente não controla mais o tempo que passa online. A gente só obedece.

Esse vício é silencioso. Não dá ressaca, não tem cheiro, não é julgado. Pelo contrário, é incentivado. Quanto mais tempo você passa conectado, mais você parece “presente”, “atualizado”, “produtivo”. Mas no fundo, estamos esgotados. A cabeça não desliga. O dedo desliza no automático. E o corpo vai ficando em segundo plano. Você está na mesa de jantar, mas não está. Está no sofá, mas não vê o filme. Está com amigos, mas com a mente em outro lugar. A tecnologia colonizou nossa atenção. E atenção é o ativo mais precioso que temos.

Eu comecei a perceber isso quando notei que tava rindo menos. Não porque eu tava triste, mas porque eu simplesmente não tinha tempo de parar pra achar graça nas coisas. Tudo virou estímulo. Tudo virou conteúdo. Não existe mais tédio, só distração. E isso parece bom à primeira vista. Mas aos poucos vai corroendo a capacidade de focar, de refletir, de estar com você mesmo. Porque ficar sem fazer nada hoje em dia é quase um ato de resistência. O silêncio incomoda. O tempo livre parece inútil. E isso não é por acaso. É o projeto.

As grandes plataformas foram desenhadas pra prender. Cada like, cada notificação, cada rolagem infinita é pensada pra liberar dopamina. E a dopamina vicia. A gente acha que tá escolhendo, mas na verdade tá sendo conduzido. Algoritmos entendem o que nos prende e entregam isso de bandeja. Não pra nos ajudar, mas pra nos manter lá. Quanto mais tempo online, mais dados eles coletam. Quanto mais dados, mais eles nos conhecem. E quanto mais nos conhecem, mais nos manipulam. A linha entre uso e abuso se perdeu. E a gente segue achando que tem o controle, quando na verdade já perdeu faz tempo.

Transumanismo

Eu costumava achar que só era vigiado se tivesse algo a esconder. Que privacidade era coisa de paranoico. Até que comecei a prestar atenção em como meu comportamento online era rastreado. Você faz uma busca, e minutos depois começa a ver anúncios relacionados em todos os lugares. Você fala perto do celular, e ele te responde com recomendações. Você curte uma postagem, e aquilo molda o que você vai ver nas próximas semanas. E aí você entende: não é coincidência. É sistema.

A gente vive num reality show invisível, onde cada clique, cada rolagem, cada segundo de atenção é capturado, analisado e vendido. Os dados viraram o novo ouro, e nós somos a mina. Tudo que você faz na internet está sendo registrado. Não só pra “melhorar a experiência”, mas pra prever seus desejos, antecipar suas decisões e influenciar seu comportamento. Isso não é teoria da conspiração. É modelo de negócio. E a gente aceitou isso em troca de conveniência. Achou normal clicar em “aceito os termos” sem ler nada. Achou normal compartilhar tudo em tempo real. Achou normal abrir mão da liberdade em nome da praticidade.

O mais assustador é que a vigilância não é feita por soldados, mas por códigos. Não é agressiva, é sutil. É um feed que mostra o que você quer ver. É uma busca que confirma o que você já pensa. É um sistema que te entrega conforto, mas cobra sua autonomia. E aos poucos, sem perceber, você vai sendo moldado. Seus gostos, suas opiniões, até suas emoções são guiadas por algoritmos que sabem mais sobre você do que você mesmo. Isso não é só sobre anúncios. É sobre poder. Quem controla a informação, controla a percepção. E quem controla a percepção, controla tudo.

Eu comecei a notar essa manipulação quando percebi que minhas opiniões estavam ficando mais extremas. Que eu me irritava mais fácil, que eu me cercava só de conteúdos que confirmavam o que eu já acreditava. E isso não foi por acaso. Foi algoritmo. As plataformas descobriram que a indignação retém mais do que a paz. Que a raiva engaja mais do que o respeito. E elas entregam isso como se estivessem fazendo um favor. Mas na prática, estão moldando uma geração emocionalmente reativa, dividida e viciada em confirmação. E tudo isso sob o pretexto de “conectar pessoas”.

Chega um ponto em que você começa a se perguntar: até que ponto o que eu penso é realmente meu? A gente vive cercado de decisões que parecem espontâneas, mas foram empurradas sutilmente por recomendações, algoritmos e tendências artificiais. Você escolhe um restaurante porque apareceu no seu feed. Escolhe um destino de viagem porque viu em um vídeo. Compra um livro que te foi “sugerido”. Acredita em uma ideia porque leu várias vezes de formas diferentes. E no fim, você acha que tá decidindo. Mas tá sendo guiado.

Esse controle digital é sofisticado demais pra parecer imposição. Ele se apresenta como facilidade. Como praticidade. Como personalização. Só que quando tudo que você vê já foi escolhido com base no que você já gosta, você para de expandir. Para de pensar diferente. Fica preso numa bolha confortável e previsível. E quanto mais você permanece nela, mais ela se fortalece. Até que chega um momento em que você nem consegue mais imaginar outro jeito de ver o mundo. A tecnologia, que prometia diversidade, acaba reforçando o que é familiar. E isso limita.

O problema é que essa limitação não vem com aviso. Ela vem embalada em estímulos, em relevância, em engajamento. E enquanto você navega, vai sendo moldado. Não por um vilão com rosto, mas por uma lógica invisível. A lógica do lucro. Quanto mais previsível você for, mais vendável você se torna. Por isso os sistemas querem que você pense como todo mundo. Que consuma como todo mundo. Que deseje como todo mundo. A personalização é uma farsa elegante. No fundo, é padronização disfarçada.

Chatbots e deepfakes

Eu percebi isso quando comecei a sentir que minha criatividade estava travando. Tudo parecia repetido. As mesmas ideias, os mesmos temas, os mesmos comportamentos. Fui me dando conta de que estava vivendo num roteiro. Um que não escrevi, mas aceitei. E comecei a me questionar: será que estou mesmo livre? Ou só adaptado? Porque se a gente não se observa, não se questiona, não se desconecta de tempos em tempos, a gente vira extensão da máquina. Um perfil. Um comportamento. Um número. E isso, pra mim, é o oposto de liberdade.

A primeira vez que tentei me desconectar por alguns dias, senti ansiedade. Não era saudade de ninguém. Era medo de não estar por dentro. Medo de perder algo. De sumir do radar. De não ser lembrado. Foi aí que entendi o tamanho da dependência. A gente se acostumou tanto a estar online que estar fora virou um vazio difícil de lidar. Mas é nesse vazio que mora a cura. Porque só quando o barulho diminui é que a gente consegue escutar a própria voz. A real, sem filtro, sem algoritmo, sem curtidas.

Recuperar autonomia nesse mundo digital não é abandonar a tecnologia. É reposicionar o nosso lugar dentro dela. É fazer escolhas com mais presença. Escolher o que consumir, quando consumir, e principalmente por quê. É limitar o tempo de tela sem culpa. É silenciar notificações que só drenam energia. É desinstalar o que não te faz bem, mesmo que todo mundo use. É retomar o controle do tempo. Porque o tempo é a moeda mais valiosa que temos, e a tecnologia aprendeu a nos convencer a entregá-lo sem resistência.

Também é preciso refletir sobre o que estamos ensinando às próximas gerações. Crianças estão crescendo já conectadas, já sendo rastreadas, já sendo condicionadas a buscar validação digital. Se a gente não criar consciência agora, o futuro será ainda mais preso, ainda mais viciado, ainda mais moldado. Precisamos ensinar que estar offline é saudável. Que silêncio não é vazio. Que privacidade é valor, não desconfiança. Que o pensamento crítico é uma forma de proteção mental. Que liberdade não é fazer tudo, mas poder escolher com clareza o que não fazer.

No fim das contas, a tecnologia é só um reflexo de quem a criou. Ela pode conectar ou afastar. Libertar ou controlar. Construir ou destruir. A diferença está em como usamos, em quanto entendemos do sistema e em que ponto escolhemos colocar limites. Viver consciente é não se deixar programar. É relembrar todos os dias que você não é um algoritmo, não é um perfil, não é um dado. Você é alguém que sente, escolhe, muda. E isso nenhuma máquina pode copiar.

Marcelo Gustavo

Marcelo Gustavo

Eu sou Marcelo Gustavo, profissional de TI formado em Segurança da Informação e atualmente cursando Análise e Desenvolvimento de Sistemas. No Mentesfera, sou responsável por toda a parte técnica: planejamento, programação e manutenção do blog, garantindo que a plataforma funcione de forma estável e segura para nossos leitores. Além disso, atuo como redator, criando artigos 100 % autorais