Nem é jogo bom, mas eu tô lá
Tem jogo que começa e eu já sei que vai ser ruim. Campo pesado, dois times sem vontade, técnico retranqueiro, narração sem graça. E mesmo assim, eu tô lá, com a TV ligada, o celular na mão, talvez até reclamando, mas assistindo. E não tô sozinho. Milhares, às vezes milhões de brasileiros fazem a mesma coisa. Sentam no sofá, abrem uma cerveja, suspiram fundo e dizem que o futebol de hoje não é mais como antes. Mas continuam ali, firmes. Por quê?
É que pra gente, o futebol não precisa ser sempre bom. Ele só precisa acontecer. O jogo pode ser feio, mas é jogo. É rotina. É ponto de encontro. É desculpa pra esquecer um pouco o que pesa lá fora. E mesmo que o jogo esteja arrastado, a gente segue. Porque o futebol, no Brasil, é mais sobre presença do que sobre espetáculo. É sobre estar ali, mesmo quando não tem muito o que ver.
Eu já perdi a conta de quantas vezes falei que não ia assistir determinado jogo e, quando vi, tava lá acompanhando o segundo tempo, analisando quem devia ser substituído, reclamando do juiz. É como se o futebol fizesse parte da minha identidade. Algo que mora fundo, que não se explica só com razão. Eu posso não lembrar o que comi na terça passada, mas lembro quem jogou mal na rodada do fim de semana.
E tem um detalhe que faz tudo isso ainda mais curioso. A gente assiste jogo ruim com uma esperança teimosa. Como se, a qualquer momento, pudesse surgir um golaço inesperado, uma jogada absurda, um milagre que justifique o tempo gasto. E quando não vem, tudo bem. A gente xinga, desabafa, fecha a cara. Mas na rodada seguinte, tá lá de novo. Porque não é só sobre o jogo. É sobre o que o jogo representa.
Tem algo de ritual nisso tudo. O futebol vira trilha sonora do nosso cotidiano. Ele preenche o silêncio, distrai a mente, segura a ansiedade. Às vezes, até une quem não se fala há dias. Um jogo ruim pode ser o pretexto perfeito pra puxar conversa com o vizinho, pra fazer uma piada, pra extravasar uma irritação que nem tem a ver com o futebol em si.
Futebol ruim ainda é futebol. E isso já é suficiente
Eu já assisti jogo ruim por puro tédio, mas também já assisti por saudade. Saudade de um tempo em que o futebol era mais que distração. Era programação de família, de domingo com feijão, de rádio ligado no quintal. E mesmo hoje, quando tudo parece mais corrido, mais frio, mais digital, sentar pra ver uma partida medíocre ainda me resgata uma sensação de pertencimento.
O futebol no Brasil não é só esporte. É memória. É elo entre gerações. É algo que passa de pai pra filho, de avô pra neto, de vizinho pra vizinha. A camisa do time, o grito da torcida, até a frustração de ver o time jogar mal faz parte de um tipo de herança afetiva que vai se repetindo. Quando a gente assiste um jogo ruim, na verdade, tá reconectando com um monte de coisa que nem sempre sabe nomear.
Eu já vi gente que não tem dinheiro nem pra pagar o gás, mas dá um jeito de assistir o jogo. Já vi gente assistindo com TV em preto e branco, em bar com som ruim, com imagem travando no celular. O jogo pode estar uma porcaria, mas ainda assim carrega um significado que nenhuma transmissão consegue capturar por completo. Porque o brasileiro não assiste só com os olhos. Assiste com lembrança, com fé, com saudade, com raiva, com amor.
E mesmo quem diz que não gosta de futebol costuma se pegar envolvido em alguma partida. Pode ser por rivalidade, por zoeira, por solidariedade. O futebol cria conexão onde antes só havia distância. Um gol mal anulado rende conversa por dias. Um jogo chato pode render memes, provocações, tretas saudáveis. É um espaço onde o brasileiro se expressa como é. Apaixonado, impaciente, teimoso, mas presente.
Por isso, o jogo ruim ainda tem valor. Porque, no fundo, a gente não tá assistindo esperando beleza. A gente tá assistindo esperando sentir alguma coisa. Às vezes, qualquer coisa. Porque tem dia que a vida tá tão insossa que até um zero a zero feio parece emocionante perto da rotina. E aí, a gente se apega ao que dá. Mesmo que seja só uma bola mal cruzada aos quarenta e oito do segundo tempo.
O jogo é ruim, mas o sentimento é sempre gigante
Tem algo que só o futebol consegue fazer: transformar um jogo sem emoção em um episódio inesquecível, não pelo que acontece em campo, mas pelo que acontece fora dele. A piada pronta, a bronca que rende meme, o comentário do narrador que viraliza, o torcedor que aparece na câmera fazendo promessa com o rosto pintado. Mesmo quando a bola não colabora, o brasileiro encontra um jeito de viver aquilo com intensidade.
O futebol é uma espécie de teatro nacional. Cada rodada é um capítulo novo de uma novela que nunca termina. Às vezes é drama, às vezes é comédia pastelão, mas nunca passa batido. Até o tédio se torna pauta. Quando não tem gol, tem crítica. Quando não tem lance bonito, tem ironia. Quando não tem espetáculo, tem zoeira. E isso também é entretenimento. Isso também é sentimento.
É impressionante como o brasileiro consegue transformar até a mediocridade do jogo em algo que faça sentido. Não importa se é um amistoso entre reservas ou uma rodada insossa do campeonato estadual, ainda assim tem alguém comentando, torcendo, xingando, vibrando por uma bola espirrada na lateral. O jogo pode não ter técnica, mas tem torcida. Tem conversa. Tem vida.
E acho que essa é a essência do nosso futebol. A beleza não precisa estar na qualidade da partida. Ela pode estar na reação do torcedor, na nostalgia que um estádio vazio traz, no som da arquibancada mesmo que seja gravado. O brasileiro não assiste futebol como quem avalia uma obra de arte. Assiste como quem participa de um ritual. Como quem precisa daquilo pra se sentir parte de alguma coisa.
É como se o jogo, mesmo ruim, fosse o pano de fundo pra uma experiência maior. A gente não tá só vendo vinte e dois caras correndo atrás de uma bola. A gente tá lembrando do gol de infância, da camisa do time preferido, da discussão com o tio que torce pro rival. A gente tá se conectando com algo que ultrapassa o placar.
E talvez seja por isso que o futebol nunca morre, mesmo quando parece chato. Porque ele é mais do que o que acontece em campo. Ele é o que acontece dentro da gente.
No fim das contas, o futebol é nosso jeito de continuar
Eu já assisti jogo feio em dia de dor. Já deixei a televisão ligada em jogo ruim só pra não ficar em silêncio. Já reclamei de escalação absurda como quem desabafa sobre a vida. E percebi que o futebol, mesmo sem entregar grandes partidas, ainda entrega presença. Ainda nos dá um motivo pra continuar acreditando que algo pode mudar no último minuto. Porque é isso que a gente faz o tempo todo na vida: torce pra que mude.
Tem gente que diz que o futebol brasileiro perdeu qualidade. Que os jogos estão cada vez mais duros de ver. Mas, mesmo assim, os estádios continuam recebendo torcida. Os bares ainda se enchem. As casas ainda param. Porque não é só sobre o que o jogo oferece. É sobre o que a gente busca nele. É sobre não desistir de sentir, mesmo quando parece que não vai valer a pena.
A gente assiste jogo ruim porque a gente não assiste só futebol. A gente assiste um pedaço da nossa cultura. Um reflexo da nossa teimosia emocional. Uma síntese do que é ser brasileiro: seguir esperando, mesmo quando já sabe que não vai dar certo. Mas vai que dá. Vai que hoje acontece. Vai que entra. Vai que muda tudo.
É por isso que a gente segue. Com a TV ligada, com o radinho no ouvido, com o coração machucado, mas atento. Porque, no fim, o futebol não precisa ser bonito. Só precisa estar lá. Como sempre esteve. Como sempre estará.
Mesmo que o jogo seja ruim.