• 13 Jun, 2025
Fechar

Por que o jeitinho brasileiro é tão admirado e criticado ao mesmo tempo?

Por que o jeitinho brasileiro é tão admirado e criticado ao mesmo tempo?

Desde pequeno ouço a expressão “jeitinho brasileiro” como se fosse uma qualidade. Algo quase heróico. Um elogio disfarçado de crítica ou uma crítica com cara de elogio. Depende de quem fala. E do tom. “Fulano conseguiu resolver com jeitinho”. Às vezes isso significava criatividade, inteligência, improviso. Outras vezes, era só um jeito educado de dizer que alguém burlou uma regra. E aí comecei a me perguntar: por que a gente admira tanto esse jeitinho, mas também sente vergonha dele? Por que algo que faz parte da nossa identidade também nos irrita?

A primeira vez que percebi o poder dessa expressão foi quando vi alguém furar fila com charme e sorriso. A pessoa fingia que não sabia, pedia desculpa exageradas, puxava assunto com a atendente. Quando percebia, já tinha passado na frente de todo mundo. E ninguém reclamava. Alguns riam. Outros balançavam a cabeça. Era o tal do jeitinho em ação. Não era violência, não era imposição. Era uma espécie de jogo social. Uma habilidade de contornar obstáculos usando simpatia, criatividade ou, em alguns casos, pura cara de pau. E isso me intrigava. Ainda me intriga.

Ao longo da vida, fui percebendo que esse comportamento não está só nas pequenas coisas. Ele aparece em todos os níveis da sociedade. No trânsito, na política, nos negócios. Quando alguém resolve um problema “por fora”, quando arranja um “conhecido que agiliza”, quando dá aquela “forcinha” pra evitar burocracia. O jeitinho se manifesta com mil rostos. Às vezes é um escape necessário diante de um sistema travado. Outras vezes, é um atalho que prejudica quem faz tudo certo. E é por isso que ele divide tanto opiniões. Porque ele está entre a solução e o problema.

O que mais me chama atenção é como o jeitinho é ensinado sem ser dito. Ninguém precisa explicar. A gente aprende observando. Vendo como os outros fazem. E com o tempo, a gente começa a praticar também. Às vezes sem perceber. Às vezes justificando com frases como “é só dessa vez” ou “todo mundo faz”. E é aí que mora o perigo. Quando o jeitinho vira regra, e não exceção. Quando ele substitui o esforço legítimo por atalhos. E aí já não é mais sobre criatividade. É sobre acomodação. E o que parecia virtude começa a se tornar um vício cultural.

Pra entender o jeitinho brasileiro, é preciso voltar no tempo. Esse comportamento não surgiu do nada. Ele é fruto de um contexto social, político e histórico muito específico. O Brasil sempre foi um país marcado por desigualdade, por estruturas burocráticas lentas e por relações sociais baseadas em influência pessoal. Desde o período colonial, o acesso aos direitos e aos recursos muitas vezes dependia mais de quem você conhecia do que das regras oficiais. E nesse ambiente, ser criativo, improvisar e encontrar saídas por fora se tornou uma forma de sobrevivência.

Essa relação com o improviso foi sendo passada de geração em geração. O brasileiro aprendeu a não confiar totalmente nas instituições. A regra era seguir regras só até certo ponto. E quando o sistema falhava, e falhava com frequência, o caminho alternativo se tornava quase obrigatório. Era uma questão de adaptação. E isso moldou o comportamento coletivo. O jeitinho, nesse sentido, começou como resposta à ineficiência. Uma estratégia para lidar com a lentidão, com o peso da burocracia e com as injustiças.

Mas com o tempo, essa prática deixou de ser só reação. Virou cultura. Virou identidade. E passou a ser aplicada também onde não era necessária. Não era mais apenas para resolver um problema, mas para evitar esforço. Para conseguir vantagem. E foi aí que a coisa começou a se complicar. Porque o que antes era engenhosidade passou a ser confundido com esperteza mal-intencionada. E nesse ponto, o jeitinho deixou de ser uma ferramenta de sobrevivência para se tornar um atalho perigoso. Um hábito que, muitas vezes, prejudica mais do que ajuda.

Mesmo assim, o Brasil continua enxergando o jeitinho com um certo carinho. Talvez porque ele revele algo sobre nós que é difícil de explicar. A capacidade de rir na adversidade, de dar um jeito onde não há, de criar solução do caos. O problema é quando isso vira justificativa pra tudo. Quando ele passa a ser desculpa pra corrupção, pra falta de compromisso, pra desrespeito com os outros. É nesse ponto que a linha entre criatividade e desonestidade começa a desaparecer. E quando isso acontece, o que era admirado passa a ser criticado, às vezes pelas mesmas pessoas.

Eu já vi o jeitinho brasileiro salvar situações que pareciam perdidas. Já vi gente transformar um problema sem saída numa solução brilhante com recursos mínimos. Um encanamento improvisado com pedaços de mangueira, um som consertado com fita adesiva, um evento inteiro realizado com orçamento quase inexistente. Nessas horas, o jeitinho é arte. É resiliência. É criatividade aplicada à realidade. E quando isso acontece, não tem como não admirar. É o famoso “dar seus pulos” que muita gente aprendeu na marra. Uma habilidade de sobreviver mesmo quando tudo ao redor parece desmoronar.

Esse lado do jeitinho é legítimo. Ele não fere ninguém. Pelo contrário, ele constrói. Surge como resposta a uma necessidade real. Ele aparece na gambiarra que funciona, no improviso que salva o dia, na solução que dribla a falta de estrutura. Ele é irmão da criatividade brasileira que encanta o mundo. Aquela mesma criatividade que aparece nas favelas, nos interiores, nas periferias. Que transforma pouco em muito. Que reinventa com o que se tem. E que, em muitos casos, é a única saída possível. Esse é o jeitinho que merece ser celebrado.

Mas também tem o outro lado. Aquele que desrespeita. Que engana. Que fura fila. Que dá um jeitinho pra passar na frente dos outros. Que manipula regras em benefício próprio. Que frauda. Que prejudica. E esse lado, infelizmente, é tão presente quanto o outro. Às vezes vem disfarçado de malandragem inocente, mas quando a gente olha de perto, vê que tem alguém sendo lesado. É o jeitinho que não constrói, só burla. Que não improvisa pra resolver, mas pra tirar vantagem. E quando isso vira padrão, o resultado é um país onde quem segue a regra parece tolo.

Eu mesmo já me vi nesse dilema. Já vivi situações em que o caminho mais fácil exigia um jeitinho que não era certo. E é nessas horas que a gente sente o peso da cultura. Porque ela te empurra. Te diz que não tem problema. Que é assim mesmo. Que você seria bobo se não fizesse igual. Mas aí você percebe que cada pequeno atalho tem um custo. Às vezes invisível. Às vezes coletivo. O trânsito que não anda, o serviço que atrasa, o sistema que não funciona. Tudo isso é alimentado pelo excesso de jeitinho mal usado. E aí, o que parecia inofensivo se revela corrosivo.

A grande questão não é acabar com o jeitinho brasileiro, mas ressignificá-lo. Ele faz parte da nossa identidade, da nossa forma de existir, da nossa criatividade diante das dificuldades. O que precisamos é reorientar esse comportamento. Tirar o foco da vantagem pessoal e colocar no coletivo. Substituir o atalho por solução legítima. Transformar o improviso em projeto. O jeitinho pode ser uma ferramenta incrível, desde que não sacrifique valores. E isso exige uma mudança de mentalidade, que começa nas pequenas escolhas do dia a dia.

Comecei a reparar que muita coisa muda quando a gente para de normalizar o que está errado. Quando alguém fura fila e a gente não ri, mas questiona. Quando escolhe o caminho mais longo, mas certo. Quando recusa aquele “favorzinho” que envolve ultrapassar um limite ético. Parece pequeno, mas é assim que se constrói uma nova cultura. O jeitinho pode continuar existindo, mas com outro sentido. Pode continuar sendo nosso, mas sem precisar passar por cima de ninguém. Pode ser sinônimo de criatividade sem ser cúmplice da desonestidade.

A responsabilidade também é coletiva. Está na educação, nas instituições, nas lideranças. Precisamos de exemplos. Precisamos valorizar quem faz certo, e não quem “se deu bem”. Precisamos ensinar que ética não é rigidez, é compromisso com o outro. O brasileiro tem uma capacidade incrível de adaptação, de criação, de lidar com a adversidade. Se essa energia for canalizada com consciência, podemos reinventar o jeitinho como uma marca positiva. Algo que orgulha, e não que envergonha.

No fim, acredito que o jeitinho brasileiro não precisa desaparecer. Ele só precisa evoluir. De truque pra talento. De atalho pra inovação. De esperteza pra sabedoria. Porque o Brasil não é só feito de problema. É feito de gente que resolve. Gente que pensa fora da caixa. Gente que dá um jeito, sim, mas um jeito certo, honesto, coletivo. E talvez seja esse o nosso maior diferencial: a capacidade de transformar o caos em criação. O desafio agora é fazer isso sem deixar a ética de lado.

Marcelo Gustavo

Marcelo Gustavo

Eu sou Marcelo Gustavo, profissional de TI formado em Segurança da Informação e atualmente cursando Análise e Desenvolvimento de Sistemas. No Mentesfera, sou responsável por toda a parte técnica: planejamento, programação e manutenção do blog, garantindo que a plataforma funcione de forma estável e segura para nossos leitores. Além disso, atuo como redator, criando artigos 100 % autorais