• 12 Jun, 2025
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Virar a Chinela Dá Morte? E Outras Crendices Que o Brasil Me Ensinou a Temer (e Respeitar)

Virar a Chinela Dá Morte? E Outras Crendices Que o Brasil Me Ensinou a Temer (e Respeitar)

Neste artigo, mergulho nas superstições que fizeram parte da minha infância e ainda me cercam hoje. A chinela virada que mata mãe, o copo de água atrás da porta, o sal no canto da casa. Coisas simples, ditas entre risos e alertas, mas que carregam medo, memória, cuidado e até afeto. Um texto sobre como o brasileiro se equilibra entre fé, tradição e sobrevivência.

A primeira vez que ouvi que a chinela virada matava mãe

Foi num fim de tarde qualquer, chão quente, chinelo largado no canto da sala. Eu devia ter uns sete anos quando minha avó olhou pra mim com os olhos arregalados e falou com uma urgência que nunca esqueci: “Endireita essa chinela! Assim, virada pra baixo, mata a mãe!”. Eu não entendi direito, mas endireitei na hora. E desde aquele dia, nunca mais consegui ver uma sandália virada sem me sentir responsável por alguma tragédia iminente.

Acho que todo brasileiro, em algum momento da vida, já teve contato com alguma dessas crendices populares. A chinela virada é só a mais famosa. Tem o copo de água atrás da porta pra afastar o mal, tem o sal grosso no canto da casa pra limpar energia ruim, tem o banho de arruda, o pé de coelho, a figa, a ruda pendurada atrás da porta, a simpatia da meia-noite, o galho de arruda atrás da orelha, a reza de quebranto. É um universo inteiro, onde lógica e afeto se misturam.

O curioso é que, mesmo quando a gente cresce, mesmo quando passa a questionar tudo, essas ideias continuam ali. Meio escondidas, mas sempre prontas pra aparecer de novo. Eu já virei adulto, já estudei, já mudei de cidade, mas basta ver uma chinela virada pra sentir aquela pontinha de culpa. Às vezes nem conserto por acreditar. Conserto por respeito. Por hábito. Por memória.

Essas superstições são como pequenos lembretes de quem a gente é e de onde a gente veio. Carregam o sotaque das nossas avós, o tom firme das nossas mães, o cuidado quase místico das mulheres que criaram a gente. São formas de lidar com o medo. De tentar ter controle sobre um mundo que não oferece garantias. E mesmo que muita gente ria, eu acho bonito. Acho que tem algo sagrado nisso. Mesmo que não faça sentido, faz presença.

No fundo, essas crenças nos ajudam a nomear o que é invisível. Dão forma a coisas que a gente não sabe explicar, mas sente. E isso, pra mim, já é um tipo de sabedoria.

O medo que não se explica, mas que se obedece

O que sempre me intrigou nas crendices populares não era o medo em si, mas o jeito como ele era passado. Ninguém sentava pra explicar com calma. Era sempre num tom de urgência, de verdade absoluta, como quem não deixa espaço pra dúvida. “Não varre o pé que senão não casa.” “Não passa debaixo da escada que dá azar.” “Bate na madeira três vezes.” Era um tipo de educação paralela, feita de alertas e cuidados que vinham no meio do dia, entre um café e uma bronca.

E o mais curioso é que todo mundo obedecia. Às vezes rindo, às vezes fingindo que não, mas obedecia. Porque essas crendices não eram só crenças. Eram parte de uma rede de convivência. Era o jeito que as pessoas encontravam pra se proteger, pra cuidar umas das outras, pra sentir que tinham alguma forma de controlar o incontrolável. E quando você nasce num país onde muita coisa foge do seu controle, qualquer ritual que te dê um mínimo de poder já vira tradição.

A chinela virada não é só sobre medo da morte. É sobre respeito pela mãe, sobre zelo pela casa, sobre escuta às gerações mais velhas. É sobre entender que, naquele gesto simples de desvirar um chinelo, existe um afeto codificado. Alguém que ensinou, alguém que se preocupou, alguém que acreditava o suficiente pra passar adiante. E quando a gente replica, mesmo sem pensar, tá mantendo essa ligação viva.

Tem também um fundo muito brasileiro nisso tudo. Um tipo de fé misturada com superstição, um sincretismo emocional que une rezas católicas, benzedeiras, umbanda, simpatias e sabedoria popular numa coisa só. No Brasil, a espiritualidade não cabe em caixinha. Ela acontece na cozinha, no quintal, na vizinha que sabe um “benzimento forte”, na senhora que tira o mau-olhado com raminho de planta. É o sagrado do cotidiano, do improviso, da tradição que ninguém escreveu, mas todo mundo conhece.

E eu acho que é por isso que essas crendices sobrevivem ao tempo. Porque não precisam de prova. Elas vivem da repetição. Da lembrança. Da sensação de que é melhor não arriscar. E às vezes, melhor mesmo. Não custa desvirar a chinela. Não custa não abrir guarda-chuva dentro de casa. Não custa seguir esse pacto silencioso que conecta tanta gente de diferentes lugares e tempos.

Essas crenças são mais do que superstição. São herança afetiva. São nossa forma popular de lidar com aquilo que escapa da lógica. E em tempos tão racionais, tão digitais, tão céticos, talvez seja isso que ainda nos mantém humanos. Essa capacidade de temer sem precisar entender.

Mesmo quem não acredita, respeita

É engraçado perceber como essas crendices moram na gente, mesmo quando a gente acha que superou. A gente cresce, lê mais, estuda, muda de ambiente, mas lá no fundo continua repetindo certos gestos como se carregasse dentro do corpo uma voz antiga que não cala. Eu mesmo já me peguei batendo três vezes na madeira só pra garantir, ou mudando o sal de lugar na casa depois de uma briga. Não por convicção, mas por uma espécie de memória sensível, quase inconsciente, que diz “faz isso, só por via das dúvidas”.

Tem algo muito brasileiro nessa maneira de acreditar sem declarar que acredita. A gente diz que é bobagem, mas não arrisca. Racionaliza, mas segue o ritual. E isso, pra mim, não é fraqueza. É conexão. É um tipo de fé silenciosa, herdada, misturada com medo, intuição, cultura e experiência. Porque por trás de cada crendice tem sempre uma história. Uma avó que sonhou com peixe e previu gravidez. Um vizinho que quebrou o espelho e depois perdeu o emprego. Um amigo que varreu o pé e ainda tá solteiro. As coincidências viram prova. E as provas viram tradição.

O mais bonito é que essas crenças criam um código que todo mundo entende. Basta dizer que viu borboleta preta dentro de casa e alguém já responde que é sinal de notícia ruim. Basta deixar a bolsa no chão e alguém te alerta que dinheiro vai embora. É um tipo de linguagem não oficial, passada sem cartilha, que atravessa gerações com força de lei popular. Não está nos livros, mas está nos almoços de domingo, nos velórios, nas festas, nas rodas de conversa em volta do portão.

E eu fico pensando em como isso vai continuar. Porque mesmo com toda a tecnologia, com toda a modernidade, com toda essa vida acelerada que a gente leva, as crendices resistem. E resistem porque falam direto com uma parte da gente que ainda é criança. A parte que precisa de consolo, que busca explicações pro que não faz sentido, que sente o invisível mesmo quando o mundo exige provas. As superstições funcionam como abrigo emocional. Um lugar onde o inexplicável encontra descanso.

Não é sobre ser bobo. É sobre reconhecer que o mistério também faz parte da vida. E que tem coisa que a gente não precisa explicar. Só sentir. E respeitar. Como a voz da mãe dizendo pra desvirar a chinela. Como o gesto automático de acender uma vela num canto da casa. Como a escolha de não passar a vassoura nos pés de alguém que a gente ama.

Esses rituais pequenos, muitas vezes feitos no automático, são como cicatrizes de um povo que aprendeu a sobreviver acreditando. E mesmo que digam que é coisa de gente simples, eu prefiro ver como coisa de gente sábia. Gente que entende que o mundo é mais do que o que se vê. E que, às vezes, a melhor forma de lidar com o desconhecido é com respeito e intuição.

A superstição é o jeito mais antigo de cuidar de quem a gente ama

Hoje, quando vejo uma chinela virada, ainda endireito. Não por medo, nem por fé cega, mas por tudo que aquilo representa. Endireitar uma chinela é quase um gesto de amor herdado. Uma forma de honrar quem veio antes. De manter viva uma linha invisível que conecta passado, presente e futuro. É sobre lembrar que alguém me ensinou aquilo como forma de cuidado. E repetir o gesto é, de certa forma, cuidar também.

As crendices populares são parte da alma do Brasil. São memória oral, saber coletivo, proteção simbólica. Elas carregam a dor, a fé e a criatividade de um povo que, por séculos, teve que sobreviver mais na intuição do que na estrutura. Não são só lendas. São estratégias. Formas de existir num mundo que tantas vezes foi hostil. E isso merece respeito.

Porque quem cresceu ouvindo esses alertas, mesmo entre risos, carrega dentro de si uma biblioteca viva de significados. Cada superstição é um pedaço de história popular. Cada simpatia é um fragmento de sabedoria. E cada medo pequeno é, na verdade, um sinal de que ainda existe espaço pra algo maior do que a razão: o sentir. O pressentir. O intuir. O acreditar mesmo sem entender.

O Brasil é feito disso. De gente que reza com erva, que passa sal no chão, que fecha os olhos e sente o clima da casa. De gente que acredita que o mundo é mais do que cálculo, e que o afeto pode vir disfarçado de alerta. “Não deixa a bolsa no chão.” “Não bota o chapéu na cama.” “Não aponta pro céu.” Tudo isso pode parecer superstição boba. Mas no fundo, é amor traduzido em gesto.

E é por isso que eu sigo respeitando essas crenças. Porque vejo nelas não só medo, mas memória. Não só superstição, mas estrutura emocional. Elas me lembram de quem fui, de quem me ensinou e de como eu sigo tentando cuidar do meu mundo à minha maneira. Mesmo que seja com sal no canto da casa ou um copo d’água atrás da porta.

Porque no fim, entre o invisível e o vivido, o que importa mesmo é o que a gente escolhe carregar. E eu escolho carregar esse Brasil sensível, simbólico, cheio de manias que são, na verdade, formas de afeto disfarçado. Um Brasil que ensina a temer, mas também a amar com força. E que sempre desvira a chinela. Só por via das dúvidas.

Marcelo Gustavo

Marcelo Gustavo

Eu sou Marcelo Gustavo, profissional de TI formado em Segurança da Informação e atualmente cursando Análise e Desenvolvimento de Sistemas. No Mentesfera, sou responsável por toda a parte técnica: planejamento, programação e manutenção do blog, garantindo que a plataforma funcione de forma estável e segura para nossos leitores. Além disso, atuo como redator, criando artigos 100 % autorais